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ARTIGO CIENTÍFICO

LITERATURA E LETRAMENTO LITERÁRIO: DESVELANDO CONCEITOS

 

Fátima Aparecida de Oliveira Sozza (SEED/CTESOP)1

 

RESUMO: Considerando que os estudos atuais sobre letramento o têm associado ao campo da linguística, a apropriação desse conceito por parte dos estudos literários pode ser bastante produtiva se balizarmos alguns conceitos de literatura que, por serem menos herméticos, permitem correlacionar atividades literárias como decorrência da existência de um letramento literário. Nesse sentido, tencionamos discutir, neste artigo, alguns conceitos de literatura, postulados ao longo século XX, e modulações fundamentais para aventarmos ideias a respeito da aplicabilidade do termo letramento à literatura. A partir de tal discussão, mostramos ser pertinente a construção de um conceito para letramento literário e a defesa de que o referido fenômeno efetiva-se como uma prática social, amparado pelas ideias de caráter de ficcionalidade, fato social e relações demarcadas pelo não-pragmático.

 

PALAVRAS-CHAVE: Literatura. Letramento. Letramento literário.

INTRODUÇÃO

 

Este artigo traz um recorte de nossa dissertação de Mestrado em Letras, defendida junto ao PLE-UEM (2009), cujo objetivo geral foi o de recolher e analisar práticas de literatura de um determinado grupo de professoras dos anos finais do ensino fundamental, como sendo práticas e eventos de letramento literário. Nesta etapa de nossa pesquisa discutimos alguns conceitos relativos à literatura, visto que, ao nos referirmos à noção de letramento literário, precisamos relacionar os dois conceitos presentes no sintagma – literatura e letramento. 

Mas o que é exatamente literatura? Aguiar e Silva (1986, p. 8)  afirma que “[...] a literatura não é um jogo, um passatempo, mas uma atividade artística que tem exprimido e continua a exprimir, de modo inconfundível, a alegria e a angústia, as certezas e os enigmas do homem”.

Diferentemente dessa opinião, certa vez, em um congresso, o mundialmente famoso sociólogo norte-americano Marshal MacLuhan perpetrou a especial fineza de dizer a um grupo de escritores ali reunidos que eles eram nada mais, nada menos que os últimos sobreviventes de uma espécie em vias de extinção, pois a literatura já não servia para nada. Os dois fatos mostram que, ainda hoje, não há clareza e consenso no que diz respeito ao conceito de literatura.

Mesmo mostrando certo alargamento de idéias, os conceitos de literatura herdados do passado têm caráter de parcialidade, isto é, não constituem um ideário substancial para o campo do letramento literário ou necessitam ser ressignificados. Paralelamente ao conceito tradicional de literatura, há outros conceitos que podemos chamar de ideológicos e sociais. Geralmente, esses são mais amplos e abertos. Em nossa pesquisa, discorremos a partir dessas idéias, visando ao delineamento de um conceito aplicável ao campo do letramento literário.

 

A LITERATURA COMO PRÁTICA E COMO FATO SOCIAL

 

Na tentativa de demarcar certos contornos para a questão conceitual de literatura, tomamos algumas ideias que, embora tradicionais, são relevantes para a discussão e tornam-se produtivas, se ressignificadas a partir de novas abordagens. Estamos nos referindo à essência da literatura: a questão da escrita ou do escrito. 

Moisés (1967) encaminha seus estudos sobre a conceituação de literatura dispondo, lado a lado, a questão da oralidade em detrimento da escrita. Ele explicita que só deve ser considerado literário o texto escrito, impresso; por conseguinte, os apontamentos sobre os quais discorremos, na intenção de refinar o conceito sobre literatura e sua aplicabilidade para o campo do letramento, não discordam desse aspecto, mas, possivelmente, fazem uma nova leitura do que é essa “escrita” e esse “escrito,” e de que forma esses fenômenos podem ser compreendidos na atualidade. 

No âmbito das relações entre oralidade e escrita, reportamo-nos a Rojo (2006), para quem “escrito” é a “grafia ou materialização da palavra falada” ao passo que a “escrita” se relaciona à noção de texto, ou seja, trata-se de um escrito que possui autonomia em relação à palavra falada, cuja significação emerge dele próprio e se põe em relação a outras enunciações”. Dessa forma, a escrita deve ser entendida em seu plano enunciativo ou discursivo e “não apenas a partir de sua materialidade gráfica” (p.54). 

Nessa perspectiva enunciativa da qual fala Rojo (2006, p. 56), podem ser observadas inúmeras relações entre oralidade e escrita: 

 

Abre-se, aqui, de imediato, uma multiplicidade enorme de relações entre os orais e os escritos, pensados estes discursivamente e não mais na simplicidade de sua materialidade básica (som e grafia). Falar, então, da escrita seria falar da multiplicidade de escritos que circulam em esferas privadas e públicas e que mantêm relações complexas com os orais que também circulam nestas esferas, em diferentes situações.

 

Observando, portanto, que oralidade e escrita se aproximam, a autora mostra que parecem infundadas as posições radicais que separam o oral e a escrita, pois, discursivamente, entre ambas há “relações complexas de hibridização de gêneros e de modalidades” (ROJO, 2006, p. 68). Por acatarmos essa posição, entendemos que a prática de contação de histórias, seja em ambiente familiar, seja em ambiente escolar, é um exercício que evidencia uma prática de letramento literário, pois nos apoiamos nessa multiplicidade de relações entre os orais e os escritos, pensados de forma discursiva e não na materialidade de suas formas (som e grafia).

Outro conceito de literatura que parece fértil para nossas discussões é o apresentado por Amora (1967, p. 26, grifos nossos), para quem “A arte literária é, verdadeiramente, a ficção, a criação duma supra-realidade, com os dados profundos, singulares e pessoais da intuição do artista”.

Dois aspectos são passíveis de aprofundamento nessa proposição: a questão da ficção e a presença do artista. Ao discutir a mesma questão, Iser (1979, p. 402) refere-se à ficção, considerando sua orientação despragmatizada, que se articula, fundamentalmente, com o “imaginário, aos atos de fingir e ao jogo” para se referir à ficção. Segundo o teórico, a ficção funciona como um campo de ação em que um processo lúdico de fingimento é ativado. Esse campo de fingimento abre o livre acesso da escrita como discurso imaginário. Dessa forma, demarcam-se os contornos do tipo de escrita literária que interessa ao campo do letramento literário, a saber, a escrita imotivada, cuja marca fundamental seria a ficcionalidade que se opera por diversas formas de figuração (dramática, lírica, narrativa, épica).

Hansen (2005) também procura compreender a literatura a partir de um traço fundamental: o caráter de ficcionalidade, uma vez que, antes de outras especificidades apontadas pela crítica ao longo da história, o literário está presente em um texto quando é possível lê-lo como o resultado de um ato de fingir (HANSEN, 2005). A mimese verbal constitui uma forma de jogo que possibilita a encenação de uma realidade que se faz imaginária e, portanto, inscreve-se na estrutura do fingimento. Ao mesmo tempo, é importante salientar que o texto que operacionaliza esse fingimento do possível é imotivado, pois

 

[...] suas asserções não implicam a identidade entre o discurso e a materialidade das coisas e dos estados de coisas figurados nele. A materialidade das coisas é posicionada, situada, perspectivada ou dramatizada: o texto efetua uma materialidade auto-referencial ou pseudo-referencial, pois a existência real das coisas ou eventos representado nele não é pertinente para sua significação (HANSEN, 2005, p. 19).

 

Esse posicionamento de Hansen (2005) é interessante para nossas proposições, porque, sendo o texto literário aquele que é possível ler enquanto um espaço aberto à encenação, enquanto fingimento, a ficção se desprega de todo um condicionamento às molduras do mundo real. Nesse sentido, o texto ficcional, definido como fingimento, torna-se despragmatizado, embora cumpra seu papel quando organiza formas e configurações para experiências ignoradas no plano cotidiano.

Conforme mencionamos, o outro fator interessante nas postulações de Amora (1967) é a presença do artista. Incorporar o artista à obra foi um propósito significativo para tomar a literatura como uma prática social ou um fato social. Essa visão culmina com uma tríade que vem sendo apresentada pelos estudos literários respaldada em estudos sociológicos, pensada  na triplicidade autor-texto-leitor, consumando o que Candido (1973) denomina de “sistema literário”.

Ao comentar sumariamente o desenvolvimento da moderna teoria literária, Eagleton (1983, p. 80) sugere três grandes momentos ou fases que perpassam o sistema literário: a fase do autor, a fase do texto e a fase do leitor. No início, o autor do texto ocupou o lugar de destaque entre os estudos, uma vez que o modelo de crítica romântica que perdurou até o século XIX trazia, em meio as suas preocupações, os estudos biográficos do autor, considerando o texto ou a obra um produto de sua mente genial. O autor romântico assume o lugar de produtor, senhor de sua criação e detentor dos sentidos, acima do leitor e, até mesmo, de sua obra.

O segundo momento, a fase do texto, estaria delimitado às primeiras décadas do século XX, atingindo seu auge nos anos 1960, quando o campo da crítica literária estava tomado pelo estruturalismo, com o domínio do significante e, mais especificamente, do texto em si. 

Posteriormente, o terceiro momento recupera ideias já aventadas no passado e abarca certas tendências mais contemporâneas de estudos literários que privilegiam a figura do leitor, como a Estética da Recepção e suas vertentes. Já não é mais o texto em si, mas os sentidos que emergem dele a partir das relações com quem lê.

Eagleton (1983) demonstra conhecer bem o campo da crítica literária e se move com fluidez nesse âmbito, procurando uma visão de arte e de literatura diretamente relacionada com as condições político-econômicas que possibilitam a sua produção, consumo e fatura. Dessa forma, ele amplia sua visão de literatura discutindo, também, a filosofia, a psicanálise, a sociologia, a economia e a política, questiona aspectos formais e, em um sentido amplo, centra sua reflexão em bases sociais. Por isso, o crítico afirma que “[...] os juízos de valor sobre literatura variam no decorrer da história e que os mesmos tem uma estreita relação com as ideologias sociais” (EAGLETON, 1983, p. 22).

Após refutar várias ideias que já foram atribuídas à literatura, pois todas, devido a mudanças históricas, podem ser questionadas, Eagleton (1983) afirma que literatura será aquilo que o leitor considerar literatura em dado momento (uma obra pode ser considerada filosófica em uma época e literária em outra e o conceito do público sobre o tipo de escrita considerada de valor pode variar). Mas, segundo o autor, esses “[...] juízos de valor referem-se, em última análise, não apenas ao gosto particular, mas aos pressupostos pelos quais certos grupos sociais exercem e mantêm o poder sobre os outros” (EAGLETON, 1983, p. 22).

Esse é um conceito de literatura muito pertinente ao campo de letramento literário que adotamos em nossa pesquisa: a maneira como as pessoas se relaciona com o escrito, valorizando-o ou não, também corrobora para a construção da noção do que é o literário. Para nós, isso torna o conceito de literatura bastante móvel, aberto e amplo, pois é possível que um sujeito venha estabelecer um processo de subjetividade, isto é, modos de sentir, avaliar, perceber e acreditar, lendo, por exemplo, um texto ficcional em uma revista de entretenimento. Essa atitude está relacionada com todo um acordo de poder, com juízos de valores, em suma, com uma ideologia que subjaz às práticas de letramento com as quais esse indivíduo se relacionou durante sua vida.

No mesmo sentido, estão as proposições de Culler (1999), que conceitua a literatura no campo sociológico. Ao escrever sobre o tema, analisa elementos que comumente são empregados em conceitos tradicionais para justificar porque um texto é ou não literário. Dessa forma, ele desmonta tais conceitos e aponta onde e como se tornam frágeis e tênues. Analisando vários posicionamentos a respeito do conceito de literatura, sugere que, em primeira instância, a literatura relaciona-se com a linguagem. Segundo ele,

 

Quando a linguagem é uma prática social removida de outros contextos, destacada de outros propósitos ela pode ser interpretada como literatura (embora deva possuir algumas qualidades que a torna sensível a tal interpretação). Se a literatura é linguagem descontextualizada, cortada de outras funções e propósitos, é também ela própria, um contexto que promove ou suscita tipos especiais de atenção (CULLER, 1999, p. 32).

 

Dessa forma, a linguagem parece  tornar-se literária quando seu uso instaura um universo, um espaço de interação entre autor e leitor, por isso a expressão “promove ou suscita tipos especiais de atenção”.

Nesse sentido, percebemos que o crítico oferece duas idéias básicas sobre o que é literatura: que o literário se define a partir da linguagem e da forma como as pessoas se relacionam com a escrita. Essa maneira de lidar com o texto ou a fala, para ser literário, não pode estar ligado ao imediatismo, ou seja, não é uma maneira utilitária, mas que firma entre o leitor e o autor uma condição de subjetividade. A esse respeito, o autor acrescenta que:

 

Descrever ‘literatura’ seria analisar um conjunto de suposições e operações interpretativas que os leitores podem colocar em ação em tais textos. [...] Muitos dos traços da literatura advêm da disposição dos leitores de prestar atenção, de explorar incertezas e não perguntar de imediato ‘o que você quer dizer com isso’? (CULLER, 1999, p. 32-33). 

 

Por outro lado, seria simplista demais concluir que o conceito de literatura se resume puramente à especial forma de organizar a linguagem ou à maneira como os leitores valorizam os textos. Primeiramente, porque existem muitas obras que ostentam uma perfeita organização de linguagem e nem por isso são literárias; segundo porque não é este ou aquele tipo de linguagem que configurará a literatura, mas a relação que as palavras estabelecem com o contexto, com a situação de produção e de leitura que instaura a natureza de um texto, podendo ser valorizado pelo leitor ou não.

Por último, Culler (1999) examina cinco pontos elencados pela teoria literária em relação à natureza da literatura e mostra que, na essência, eles partem de uma perspectiva que, posteriormente, mostrar-se-á frágil. São eles: A literatura como a “colocação em primeiro plano” da linguagem; a literatura como integração da linguagem; a literatura como ficção; a literatura como objeto estético e, finalmente, o quinto ponto a ser analisado: a literatura como construção intertextual ou auto-reflexiva.

Cada um desses pontos, se tratado de forma individual, não consegue cercar com precisão um conceito de literatura. Começando pela linguagem, que, mesmo que altamente organizada ou trabalhada, não corresponde puramente à linguagem literária. A linguagem também foca a própria linguagem, as minúcias de suas estruturas linguísticas, os valores semânticos internos e também externos ao texto. A relação complexa entre esses e outros diversos elementos que se constroem chamam a atenção para a distinção de uma obra literária, mas só têm legitimidade como literatura se tratados junto a outros elementos que mostram ser aparatos da literatura. Da mesma forma são as relações de forma e conteúdo, de estilo, de abordagem e das contribuições provenientes de cada elemento para o efeito.

A projeção de um mundo íntimo, ficcional, com pontos de contato com o real, envolve personagens e ações que se relacionam com um público implícito. É o âmbito da literatura. A discussão é que, na ficção, a relação entre o que os falantes dizem e o que pensa o autor é sempre uma questão de interpretação. O mesmo ocorre com a relação entre os acontecimentos narrados e as situações no mundo: o que difere um gênero do outro é o contexto.

A obra literária como objeto estético cumpre uma de suas funções a ser exibida aos leitores para estabelecer uma relação entre forma e conteúdo, mas, em geral, não podemos definir literatura só pelo estético, pois as boas histórias também terminam por proporcionar divertimento, excitação ou instrução.

E, por último, o uso da linguagem e a forma de apresentação também podem proporcionar a intertextualidade e a autorreflexividade da literatura, mas estes correspondem a fatores classificatórios, assim como a metalinguagem, o estilo, a autoria, a coesão e a coerência, a profundidade de compreensão que visa surpreender ou atingir determinado público. É necessária uma intuição aguçada capaz de caminhar pelos labirintos da arte para que se possa determinar com certeza o cunho da obra com a qual se estabelece contato.

Em cada um dos cinco pontos observados, encontramos na estrutura, aspectos que poderiam ser apresentados como propriedades das obras literárias, características que marcam o literário, e também elementos que poderiam ser vistos como o resultado de um tipo particular de atenção. 

Outro ponto que se pode observar com os cinco aspectos discutidos por Culler (1999, p. 42) é que “[...] cada qualidade identificada como um traço importante da literatura mostra não ser um traço definidor, já que pode ser encontrada em ação em outros usos da linguagem”.

Mas então o que é literatura? Historicamente, a literatura é vista como um tipo especial de escrita que apresenta poderes civilizatórios, não apenas para as classes menos privilegiadas, mas também para aristocratas e segmentos medianos. Trata-se de uma visão de que a literatura poderia tornar as pessoas melhores, ajudando-as a se tornarem “sujeitos liberais” (CULLER, 1999, p. 44). Nessa concepção, além de promover esse caráter desinteressado, ensinaria a sensibilidade, as descriminações sutis, produziria identificações com homens e mulheres de outras condições, promovendo, assim, o sentimento de camaradagem.

Discussões teóricas recentes, todavia, têm relativizado essa visão sobre literatura e atestado que, quando se explica tal objeto como prática social, ocorre certo desvelamento e se abre uma fenda para o campo ideológico. Nesse sentido, a função que a literatura assume é um papel maior, pois pode ser utilizada como o veículo de uma ideologia, promovendo o questionamento, ou a manutenção da autoridade e dos arranjos sociais. Nesse sentido, segundo Culler (1999, p. 46) 

 

A literatura possibilita dizer o que quer que se imagine. [...] é a possibilidade de exceder ficcionalmente o que foi pensado e escrito anteriormente. [...] A literatura é uma instituição paradoxal é ao mesmo tempo o nome do absolutamente convencional, e do absolutamente demolidor, em que os leitores têm de lutar para captar o sentido. 

 

Assim, concluímos que julgar a literatura como prática social é envolver um conjunto de suposições e de interpretações que variam de acordo com o contexto, as necessidades, a cultura, o discernimento e, neste trabalho, com o conceito que vem da relação que os públicos mantêm com a escrita.

Outro conceito aqui tomado é o de literatura como fato social (ESCARPIT, 1969), remetendo à ideia de que a literatura se constrói a partir de sua relação com o social, a qual abarca instâncias, instituições e indivíduos circundados por contextos econômicos, culturais e históricos específicos. Como fato social, a literatura é um acontecimento, é a eleição de certos textos por uma série de agentes por meio de suas relações. Nesse aspecto, as ideias de Escarpit (1969), de Eagleton (1983) e de Culler (1999) apresentam certa aproximação.

Desse modo, a obra literária é um objeto social que se constrói por meio de práticas sociais, isto é, para que ela exista, é preciso que alguém a crie dentro de certa organização textual, segundo normas específicas (poesia, narrativa, epopéia, drama), e, apesar de toda aura que possa existir em torno de uma criação poética, como foi tão bem exposta por uma metalinguagem como fizeram Bilac, Melo Neto e Drummond, isso não é o bastante para ser literatura, pois é necessária a existência de um público para essa criação. Não basta, entretanto, ser o público de uma “Cidadezinha qualquer”, é necessário que haja a circulação dessa obra em vários âmbitos, meios e espaços. E que seja, especialmente, validada por um público especializado como críticos de universidades, mídia, jornais e revistas de grande circulação e credibilidade, em geral, influente no meio literário e, por último, um público consideravelmente extenso.

Além de escritores, de obras e de públicos, outras instâncias sociais ajudam a formatar o literário. Entre elas, por exemplo, a cadeia de produção: a organização da obra em um livro e, para isso, é necessário um revisor, um ilustrador, a impressão desse material por uma editora, preferencialmente conhecida no meio acadêmico. É necessário que haja um trabalho de divulgação da obra para que ela possa ser comercializada em livrarias, em lojas, em meios virtuais, ou seja, é necessário criar condições favoráveis à circulação dos textos. Assim, a literatura como fato social só existe nesse intercâmbio social que forma um sistema tal como aponta Escarpit (1969, p. 9):

 

Todo o fato literário pressupõe escritores, livros e leitores ou, de uma maneira geral criadores, obras e um público. Constitui um circuito de trocas que, por meio de um sistema de transmissão extremamente complexo, dizendo respeito ao mesmo tempo à arte, à tecnologia e ao comércio, une indivíduos bem definidos (aliás, sempre bastante conhecidos) numa coletividade mais ou menos anônima (mas limitada). 

 

Nesse sentido, o fato literário é um evento construído a partir de uma tripla pertença: autor-obra-público, elementos que são mediados por certas instâncias do sistema capitalista. Antes de a literatura se tornar uma interação estética entre produtor e consumidores, há, todavia, outras instâncias que exercem uma espécie de trânsito social pelo qual deve passar a obra literária: o editor, o distribuidor e o livreiro, normas específicas (legislação) para comercialização do objeto chamado livro, direitos autorais. Enfim, a literatura iguala-se a qualquer outro produto produzido nos moldes capitalistas.

Pensando nessa tripla pertença da literatura, Escarpit (1969, p. 36, grifos nossos) declara não haver critério algum qualificativo para definir literatura. O critério utilizado para isso é o que ele chama de “aptidão à gratuidade”, isto é, literatura é toda leitura que satisfaz uma necessidade cultural não-utilitária. Quando se considera a gratuidade como fator determinante para a conceituação de literatura, pode-se perceber que a relação de textos que compõe o literário pode ser expandida, visto que não implica, para esse autor, necessariamente, um pressuposto estético.

Esse autor destaca que a maior parte das leituras efetivas de uma população é funcional, acontece por uma necessidade de informação, além de outros materiais, sobretudo, o jornal. E, por outro lado, a imprensa, e, em especial, a imprensa semanal ou mensal, emite uma quantidade variável e grande de leituras não-funcionais de caráter literário: crônicas, novelas, contos, ensaios, entre outras produções artísticas que, por vezes, são bem aceitas socialmente, relegando o livro a um segundo plano.

Por isso, contar com as classificações formais ou materiais sistemáticas para se fazer uma idéia clara das relações leitura-literatura é inviável. Nesse sentido, ele esclarece que 

 

É antes a natureza da correspondência autor-público que nos permite dizer o que é literário e o que não é. Tanto na imprensa como na edição, existe um grande número de textos com intenção funcional, dos quais se faz correntemente um uso não funcional e propriamente literário. É muitas vezes o caso das reportagens e críticos de livros, e não seria errado citar números de obras técnicas, científicas ou filosóficas, pela sua intenção declarada, que constituem autênticas obras de literatura e como tal têm sido tratadas pelo público. Na medida em que permite a cada um evadir-se, sonhar ou, pelo contrário, meditar, cultivar-se gratuitamente, tudo o que é escrito pode tornar-se literatura (ESCARPIT, 1969, p. 38, grifos nossos).

                  

Por esse conceito, notamos que o primeiro período da citação retoma idéias aqui já abordadas, ou seja, é a relação do público com a obra que delineia, em parte, o que deve ser literatura. Mas o dado mais importante da citação é a questão da gratuidade. Nesse sentido, a relação entre obra e público deve ter marcas específicas, a marca do gratuito, daquilo que não é servil e não se compromete com o senso prático. Trata-se de uma leitura não funcional, não pragmática. O mesmo pode acontecer inversamente, pois há leituras não literárias de obra literária. Pode-se adquirir um livro só para tê-lo na estante sem desejar sua leitura. Pode-se ler um livro sem intenções linguísticas, históricas ou outras que não sejam retirar de um prazer estético qualquer benefício cultural, atividade comum e tradicional de sala de aula ou meio acadêmico nos cursos de Letras. 

Segundo Escarpit (1969, p. 39, grifos nossos) “Vê-se que a inteligência do fato literário – qualquer que seja a modalidade pelo qual abordaremos – põe problemas de psicologia individual e coletiva. Uma definição rigorosa de literatura supõe uma convergência de intenções entre o leitor e o autor.

Para esse teórico, uma definição mais ampla de literatura exige uma compatibilidade de intenções entre textos e públicos, levando em conta as estruturas sociais que enquadram o fato literário e os meios técnicos que condicionam: regimes políticos, instituições culturais, classes, camadas e categorias sociais, ofícios, indústrias de entretenimento, graus de analfabetismo, situação econômica e legal do escritor, do livreiro, do editor, problemas linguísticos e outros recursos que influenciam na leitura literária. Todas essas são instâncias importantes para a verificação da distribuição e da circulação da literatura em uma sociedade.

Quando se quer responder o que é literatura,  é preciso considerar que em cada comunidade de prática está presente todo um acordo de poder, de ideologia instaurada, que formata a escolha de livros e de textos que serão considerados literatura. Isso põe em evidência determinadas instâncias culturais que julgam o que é um texto literário ou não literário, tais como: os intelectuais, a crítica, a academia, a universidade. 

Por outro lado, não significa que essas regras não possam ser modificadas por outra grande parcela da população que não tem acesso a essas informações e nem comungam dos mesmos valores dos grupos elitizados. O que se quer evidenciar com essa discussão é que, concebendo a literatura como uma categoria de textos demarcados pelas relações de gratuidade estabelecida com o público, percebemos de modo mais claro sua existência na sociedade.

 

CONCLUSÃO            

 

Ao concluirmos essa investigação, em que abordamos o conceito de literatura que pode ser aplicável ao campo do letramento literário, expressamos de forma sintética a direção que orienta este trabalho. Primeiro: a literatura refere-se à escrita no sentido discursivo da situação de comunicação entre texto e leitor, tem um caráter de ficcionalidade como traço principal. Segundo: a literatura constitui-se como fato social determinado por vários elementos de um sistema no qual autores, obras e públicos se articulam por meio de várias instâncias (mercado, crítica, legislação e outras). Terceiro: o literário é fortemente demarcado pelas relações não pragmáticas entre texto e público. 

Assim, é possível aventarmos uma proposição  conceitual para o fenômeno letramento literário, o qual teria um aproveitamento significativo das postulações de  Kleiman (1995, p. 19), para quem o letramento é “um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos”. No entanto, para o campo da literatura nossa idéia a esse respeito passaria por uma ressignificação adicionando à essa ideia, primeiramente, ao termo letramento o adjetivo literário. Em seguida, tomando com base o conceito de literatura, aqui defendido, como um fato social demarcado pela ação de várias instâncias, letramento literário assumiria como definição a seguinte ideia:: conjunto de práticas sociais que usam a escrita literária, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos. 

            A primeira parte do conceito apresentado aponta para as práticas sociais, por meio das quais se podem entender as ações que os sujeitos realizam em situações sociais com a escrita. Fica claro que essas práticas tratam de ações específicas que utilizam a escrita literária. A segunda parte do conceito reitera a especificidade da escrita dentro do letramento, no sentido apresentado anteriormente, quando se tratou do caráter de ficcionalidade, ou seja, a escrita é usada como sistema simbólico, isto é, não só porque ela utiliza símbolos (letras) para dizer coisas, mas porque, como sistema simbólico, ela significa, ela conota coisas, ela foge do usual e entra no jogo do fingimento. A conotação no campo literário representa o figurado, o metafórico, o irreal e, visto que uma condição para a apropriação do conceito é estabelecer de forma intraconceitual o que é próprio da literatura, podemos dizer que a escrita, como sistema simbólico, é a escrita que tem como características principais: traço de ficcionalidade, de conotatividade e de desobjetividade.

Conforme estabelecido anteriormente, retomamos, ao tratar da escrita literária, a idéia de aproximação entre oralidade e escrita, em uma perspectiva discursiva, cujas relações são pensadas discursivamente, e não mais na simplicidade de suas materialidades básicas: som e grafia (ROJO, 2006). Desse modo, a prática de contar uma história, de assistir a uma novela televisiva, a uma peça de teatro ou a certos videoclipes, de jogar videogamespressupõe todo um discurso que tem relações, semelhanças, enquanto formas discursivas, com aspectos presentes em textos escritos e impressos. Por isso, compreendemos que essas atividades também podem ser consideradas escritas literárias multimodais, pois, muitas vezes, abarcam outros sistemas semióticos, como sons e imagens. 

            Ao considerarmos que a escrita literária também pode ser usada em contextos específicos e em situações demarcadamente específicas, constatamos que essa prática de escrita está presente em vários momentos das atividades dos grupos sociais. Por exemplo, um jovem tem por objetivo apresentar sua opinião sobre a violência urbana. Para isso, ele pode criar uma história, fazer uma poesia protesto, compor um rap, ou seja, há inúmeras formas de utilizar a escrita literária em contextos específicos para objetivos específicos. O conceito (letramento literário) abrange, portanto, variadas práticas e usos da escrita literária, uma vez que existem várias situações e diversos contextos nos quais essas práticas podem ser efetivadas. Logo, podemos pensar que esse conceito não está restrito ao meio escolar. Trata-se de um fenômeno mais amplo e que pode ser verificado em outros contextos sociais.

Nesse sentido, esse conceito torna possível analisar contextos específicos que utilizam a escrita literária em situações e com objetivos particulares. É possível, também, determinar e rastrear as influências e as orientações que permeiam as leituras literárias de segmentos sociais específicos. É importante salientar que os modos de apropriação da escrita literária ocorrem de formas diferenciadas conforme as necessidades dos sujeitos, pois o letramento está historicamente situado. Por último, ao tomarmos a literatura como uma escrita que porta traços de ficcionalidade, desobjetividade, estamos compartilhando a ideia de que a literatura é uma atividade despragmatizada, quer dizer, não deve servir para contextos práticos; remontando ao mundo do fingimento, do contexto imotivado. Dentre os objetivos específicos que poderíamos citar estão o deleite, a evasão, o lúdico, o prazer, os sentimentos experienciados pelo leitor por meio dos vários gêneros literários, das práticas e dos eventos. Ou, ainda, como supõe Escarpit (1969), pode haver textos cujo objetivo não era constituir-se como ficção, como literatura, mas são utilizados por seus leitores como tal.

 

REFERÊNCIAS

 

AMORA, A. S. Teoria da literatura. 7. ed. São Paulo: Clássico-Científico,1967.

CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 1973.

CULLER, J. Teoria da literatura: uma introdução. Tradução de Sandra V. T. Vasconcelos. São Paulo: Beca, 1999.

EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. Trad. Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 1983.

ESCARPIT, R. Sociologia da literatura. Lisboa: Arcádia, 1969.

HANSEN, J. A. Reorientações no campo da leitura literária. In: ABREU, M.; SCHAPOCHNIK, N. Cultura letrada no Brasil: objetos e práticas. São Paulo: Mercado de Letras: Fapesp, 2005.

ISER, W. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. Trad. De Luiz Costa Lima. In: LIMA, L. C. Teoria da literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: F. Alves, 1983. v. 2, p. 384-416.

KLEIMAN, A. B. Modelos de letramento e as práticas de alfabetização escolar. In: KLEIMAN, A. B. (Org.). Os significados do letramento. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1995. p. 15-64.

MOISÉS, Massaud. A criação literária. São Paulo: Melhoramentos, 1967.

ROJO, R. Letramento escolar, oralidade e escrita em sala de aula: diferentes modalidades ou gêneros de discurso? In: SIGNORINI, I. (Org.). Investigando a relação oral/escrito e as teorias do letramento. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2006. p. 51-74.

 

NOTA

1. Mestre em Letras – PLE. Universidade Estadual de Maringá. Professora da SEED (PDE/UNIOESTE 2007) e integrante do corpo docente da UNIMEO/CTESOP – Assis Chateaubriand. PR. E-mail: fatimasozza@unimeo.com.br

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